sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

do conto Imagens Urbanas - Carlos Ribeiro

Repito sempre: sossega, sossega — o amor não é para o teu bico.
Caio Fernando Abreu



(...)
O jovem rapaz está imovel, diante da estante muda e silenciosa. Acha triste pensar que os seus melhores amigos são aqueles livros. Por isso resolve sair àquela hora da noite pelos bares, encontrando velhos conhecidos, mas sem nunca se fixar em alguma mesa, pois ele anda alí como um fantasma. ouça esta canção: o cavaquinho e o violão e essa imensa tristeza e me diga, amor, que esperança pode haver para um homem que nao sabe sequer cantá-la? E é este jovem rapaz, silencioso e triste, que desaparece agora por entre as mesas e as cadeiras e as ruas e ladeiras do bairro. Esse se perde dos olhos de uma jovem mulher que, sentada a uma mesa, o vê distanciar-se com um sentimento de aguda impotência. Ela acreditou ter visto nele algo que não estava presente alí, entre seus ruidosos companheiros. Lamentou nao o ter seguido, porque pressentiu que ele a tomaria pela mão e a levaria para ver o mar noturno, e sentariam no passeio, e falariam de coisas realmente sérias e importantes, como as estrelas e o mar, e as estrelas-do-mar, e os cavalos-marinhos qu
e habitam as profundezas escuras do oceano - e coisas assim. E agradeceria por tê-la tirado da sua ausência, porque olhar o mar era ver o que havia de mais verdadeiro e misterioso nela mesma. Por isso baixaria os olhos e, sorrindo, derramaria suas lágruimas - estas mesmas que nublam seus olhos enquanto olha a rua sobre as garrafas de cerveja. Poderia dizer pra si: deixe de ser besta, você nao está mais com idade para essas coisas - e acreditaria um dia nas suas palavras e torna-se-ia cada dia mais uma dessas mulheres descrentes, que, por serem descrentes, tornam-se vulgares; e encobriria sua tristeza e perdas com risos vazios, e tudo isso se poderia adivinhar olhando seus olhos anuviados. Mas, nessa noite, deixaria, porém, seus pensamentos vagarem sem rumo até o rapaz que viu no bar, e pensou que poderia ter saído com ele. Pensou que sairiam andando, de mãos dadas, que ele a levaria até as dunas de Abaeté para ver a lagoa à noite, e ela iria sim sabendo que venceria sua timidez, que tocariam suas mãos, que ele passaria suas mãos sobre seus cabelos lisos, que beijaria levemente seus lábios, que encostariam seus corpos com o prazer vivo e palpitante, que tiraria sua blusa e levantaria o vestido e deitar-se-ia sobre as suas proprias roupas estendidas na areia, que beijaria seus seios e diria palavras carinhosas, feliz consigo mesmo, e ela se deixaria penetrar olhando o céu, sentindo aquela estranha e inesquecível sensação de liberdade. (...)
Meu rapaz, pensou, poderemos fazer muitas coisas, como correr sob a chuva numa noite de tempestade, anunciando o fim do mundo, percorrer as ilhas da Bahia de Todos os Santos com uma velha mochila nas costas, atravessando os mangues com lama aos joelhos, beber em todos os bares e dar uma esticada na zona onde me mostraria por que eu jamais deveria ir lá, dançar quadrilha numa noite de São João e amanhecer o dia amando-nos numa rede, enfrentar a policia nas ruas, numa passeata em defesa dos direiros humanos, correr na areia da praia, nadar, surfar,jogar pingue-pongue, assistir a filmes-catástrofe e policiais noir e filmes de arte em cinematecas, rir de todos que nos achariam irresponsáveis, pensar no futuro: num filho, numa casa no campo, no violão que você tocará cantando uma guarânia na fronteira com o Paraguai, percorrer as estradas deste país sobre caminhões, cortar o sertao num trem velho e sacolejante: café-com-pão-bolacha-não, café-com-pão-bolacha-não, veja esse luar, que como ele não há, refletindo su
a luz leitosa sobre as barracas, as caatingas e as falésias daquela praia no Ceará. Lembra-se? Esta lembrança do que nunca viveu é como uma casinha na beira do mar: as ondas quebram longe, muito longe nesta noite, e as lamparinas nos trazem um chiro doce de óleo de baleia e o mundo é um grande mistério. Você me estende a sua mão de poeta e chama-me para andar ao léu nesta avenida e conta-me histórias de sua infância, quando pensava se um dia teria a felicidade de amar uma jovem assim como eu, e achei graça quando disse que lhe dava especial prazer pensar que um dia teria uma mulher nua ao seu lado e que poderia toca-la com suas mãos, e que, num fim de tarde, sentiu, debaixo da chuva (de uma chuva forte), no alto da goiabeira, um sentimento que nunca havia experimentado antes, até que me encontrou. Mas você nunca me encontrou, pensou ela voltando-se para o rapaz ao lado que se inclinou e a beijou nos lábios, e ela deixou - e permitiu que a levasse para casa, que lhe tirasse a roupa e a penetrasse alí mesmo no automóvel, onde sentiu um prazer sujo e entrou em casa, depois, e dormiu. E sonhou. E pensou: O meu sono me faz lembrar Alice no País das Maravilhas, porque, nos meus sonhos, eu também sou como aquela menina curiosa, que se deixa arrastar pela incapacidade de suportar não saber o que há além de cada esquina, de cada árvore na floresta, de cada núvem - e como Alice eu também nao suportaria deixar de seguir um coelho de casaca e cartola com uma relógio na algibeira e uns pequenos óculos de metal; e é esta a disponibuilidade de seguir que me faz ser, que me faz, que me... oh! E aqui me encontro neste quarto espaçoso chorando, porque sei que hoje dei meu passo definitivo para longe de você e de mim. (...)





Geração 90 - ma
nuscritos de computador
Boitempo Editorial.

Sobre Carlos Ribeiro

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Um Copo de Cólera - Raduan Nassar

(...) mas não se preocupe, pilantra, você chega lá... montadinha, é claro, numa revolta usurpada, montadinha numa revolta de segunda mão; quanto a este tresmadalho, ou delinqüente, te digo somente que ninguém dirige aquele que Deus extravia! não aceito pois nem a pocilga que está aí, nem outra 'ordem' que se instale, olhe bem aqui..." eu disse chegando ao pico da liturgia, e foi pensando na suposta subida do meu verbo que eu, pra compensar, abaixei sacanamente o gesto "tenho colhão, sua pilantra, não reconheço poder algum!" "hosana! eis chegado o macho! Narciso! sempre remoto e frágil, rebento do anarquismo!... há-há-há... dogmátoco, caricato e debochado... há-há-há..." "entenda, pilantra, toda 'ordem' privilegia" "entenda, seu delinquente, que a desordem também privilegia, a começar pela força bruta" "força bruta sem rodeios, sem lei que legitime" "estou falando da lei da selva" "mas que não finge a pudicídia, não deixa lugar pro farisaísmo, e nem arrola indevidamente uma razão asséptica, como suporte" "pois vista uma tanga, ou prescinda mesmo dela, seu gorila" "dispenso a exortação, fique aí, no seu círculo da tua luz, e me deixe aqui, na minha intensa escuridão, não é de hoje que chafurdo nas trevas: não cultivo a palidez seráfica, não construo com os olhos um olhar pio, não meto nunca a cara na mascara da santidade, nem alimento a expectativa de ver a minha imagem entronada num altar; ao contrário dos bons samaritanos, nao amo o próximo, não sei o que é isso, nao gosto de gente, para abreviar minhas preferencias; afinal, alguém precisa, pilantra - e uso aqui sua palavrinha mágica - 'assumir' o vilão tenebroso da história, alguém precisa assumí-lo pelo menos para manter a aura lúcida, levitada sobre tua nuca; assumo pois o mal inteiro, já que há tanto de divino na maldade, quanto de divino na santidade; e depois, pilantra, se nao posso ser amado, me contento fartamente em ser odiado" "sem acesso à razão, ele agora se ressucita ridicularmente como Lúcifer... há-há-há... som e fúria... há-há-há você não passar, isto sim, é de um subproduto de paixões obscuras, e toda essa algaravia, obsessivamente desfiada, só serve por sinal para confirmar velhas suspeitas... aqui com meus botões, aberração moral é sempre cria de aberrações incofessáveis, só pode estar aí a explicação dos teus 'caprichos'... além, claro, do susto que te provoco como mulher que atua... e quanto a esse teu arrogante 'axílio' contemplativo, a coisa agora fica clara: enxotado pela consciencia coletiva, que jamais tolera o fraco, você só tinha de morar no mato; em favor do nosso ecologista, será contudo levado em conta o fato de não ter arrolado a poluição como justificativa, imitando assim os mestre-trapaceiros que - pra esconder melhor os motivos verdadeiros - deixam que os tolos cheguem por si mesmos às despresíveis conclusões sugeridas pelo óbvio, um jogo aliás perfeito e que satisfaz a todos: enquanto os primeiros, lúdicos, fruem em silencio a trapaça, os segundos, barulhentos, se regozijam com a própria perspicácia; mas não é este o teu caso: trapaceiro sem ser mestre, o que devia ser escondido acabou também ficando óbvio, e o tiro então saiu pela culatra, pois só podia mesmo ser este o teu 'destino': viver num esconderijo com alguém da tua espécie - Lúcifer e seu cão hidrofóbo... que pode até dar fita de cinema... há-há-há... um fechando os buraquinhos da cerca, o outro montando guarda até que chegue a noite, os dois zelando por uma confinadíssima privacidade, pra depois, na surdina... muito recíprocos... entre arranhões e lambidinhas... urdir com os fucinhos suas orgias clandestinas... há-há-há... há-há-há... há-há-há... me dá nojo!" e foi de embolada que ela desfechou a saraivada, levando firme a mão lá na pedreira, me atirando de novo a razão na cara, (...) "... eu, o quisto, a chaga, o cancro, a úlcera, o tumor, a ferida, o cancer do corpo, eu, tudo isso sem ironia e muito mais, mas que não faz da fome do povo o disfarce do próprio apetite; saiba ainda que faço um monte pr'esse teu papo, e que é só por um princípio de higiene que não limpo a bunda no teu humanismo; já disse que tenho outra vida e outro peso, sua nanica, e isso definitivamente não dá pauta pra tua cabecinha" eu disse vertendo minha bílis do sangue das palavras, sentindo que lhe abalara um par de ossos (...) a nanica, mesmo irritada, se agarrou às pressas no rabo do meu foguete, passando ao mesmo tempo - c'um eloqüente jogo das cadeiras - a me incitar pro prega "o mocinho é grandioso em tudo... fascistão!" e ela desatou sua sentença em dois tons, claramente distintos, e o que tinha no primeiro de forçada zombaria, aí enroscada numa ferina ponta de malícia, tinha de conclusiva seriedade no segundo, (...)
Paginas 58 à 63 - Editora Brasiliense, 4º edição.


terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Totonha - Marcelino Freire


www.youtube.com/watch?v=WIv1KfwIstQ

Capim sabe ler? Escrever? Já viu cachorro letrado, científico? Já viu juízo de valor? Em quê? Não quero aprender, dispenso.
Deixa pra gente que é moço. Gente que tem ainda vontade de doutorar. De falar bonito. De salvar vida de pobre. O pobre só precisa ser pobre. E mais nada precisa. Deixa eu, aqui no meu canto. Na boca do fogão é que fico. Tô bem. Já viu fogo ir atrás de sílaba?
O governo me dê o dinheiro da feira. O dente o presidente. E o vale-doce e o vale-lingüiça. Quero ser bem ignorante. Aprender com o vento, ta me entendendo? Demente como um mosquito. Na bosta ali, da cabrita. Que ninguém respeita mais a bosta do que eu. A química.
Tem coisa mais bonita? A geografia do rio mesmo seco, mesmo esculhambado? O risco da poeira? O pó da água? Hein? O que eu vou fazer com essa cartilha? Número?
Só para o prefeito dizer que valeu a pena o esforço? Tem esforço mais esforço que o meu esforço? Todo dia, há tanto tempo, nesse esquecimento. Acordando com o sol. Tem melhor bê-á-bá? Assoletrar se a chuva vem? Se não vem?
Morrer, já sei. Comer, também. De vez em quando, ir atrás de preá, caruá. Roer osso de tatu. Adivinhar quando a coceira é só uma coceira, não uma doença. Tenha santa paciência!
Será que eu preciso mesmo garranchear meu nome? Desenhar só pra mocinha aí ficar contente? Dona professora, que valia tem o meu nome numa folha de papel, me diga honestamente. Coisa mais sem vida é um nome assim, sem gente. Quem está atrás do nome não conta?
No papel, sou menos ninguém do que aqui, no Vale do Jequitinhonha. Pelo menos aqui todo mundo me conhece. Grita, apelida. Vem me chamar de Totonha. Quase não mudo de roupa, quase não mudo de lugar. Sou sempre a mesma pessoa. Que voa.
Para mim, a melhor sabedoria é olhar na cara da pessoa. No focinho de quem for. Não tenho medo de linguagem superior. Deus que me ensinou. Só quero que me deixem sozinha. Eu e minha língua, sim, que só passarinho entende, entende?
Não preciso ler, moça. A mocinha que aprenda. O doutor. O presidente é que precisa saber o que assinou. Eu é que não vou baixar minha cabeça para escrever.
Ah, não vou.

Blog do autor: http://www.eraodito.blogspot.com/